domingo, 26 de abril de 2009

Áporo

(Carlos Drummond de Andrade)

Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.

Quer fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?

Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:

em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.
Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho.

Alberto Caeiro

quinta-feira, 9 de abril de 2009

A idéia de que a literatura não serve para nada surgiu na modernidade; e a considero muito importante. É uma idéia política. É essa idéia que vai fazer a literatura de verdade sobreviver. A literatura que serve para alguma coisa é a que o mercado quer. Se vivêssemos na Idade Média, a literatura serviria para a Igreja. Se vivêssemos num país comunista, faríamos literatura oficial. Não servir para nada é um negócio radical e muito importante; permite que se faça uma literatura de ruptura, que não obedece a demandas preexistentes; cria uma nova demanda. Não é o novo pelo novo. Não é isso. É criar um mundo que ainda não existe. Criar uma vontade nas pessoas que elas ainda não têm. Isso é genial. É uma oferta para ver se germina. É lógico que eu acho que a literatura serve para alguma coisa. Mas preciso manter esta idéia, porque é uma idéia política, de resistência: literatura não serve para nada mesmo. Mas eu vou continuar fazendo. A ilusão de que não tem função é superimportante. Para mim, é fundamental; me dá um alento; me deixa respirar.

(Bernardo Carvalho)
Eu sou um pouco paranóico. Mas se pode ver a paranóia como a criação do sentido. Se o mundo não faz sentido - e não faz -, o paranóico é que aquele que vê sentido onde não tem. O mundo não faz sentido, a vida não tem sentido, não faz sentido eu estar vivo. A paranóia me atraía como uma matriz de sentido, uma matriz desvairada. A idéia da paranóia me atraía como ficção, como produção de ficção.

(Bernardo Carvalho)

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Esta tarde a trovoada caiu
Pelas encostas do céu abaixo
Como um pedregulho enorme...

Como alguém que duma janela alta
Sacode uma toalha de mesa,
E as migalhas, por caírem todas juntas,
Fazem algum barulho ao cair,
A chuva chiou do céu
E enegreceu os caminhos...

Quando os relâmpagos sacudiam o ar
E abanavam o espaço
Como uma grande cabeça que diz que não,
Não sei porquê - eu não tinha medo -
Pus-me a querer rezar a Santa Bárbara
Como se eu fosse a velha tia de alguém...

Ah! é que rezando a Santa Bárbara
Eu sentia-me ainda mais simples
Do que julgo que sou...
Sentia-me familiar e caseiro
E tendo passado a vida
Tranquilamente, como o muro do quintal;
Tendo ideias e sentimentos por os ter
Como uma flor tem perfume e cor...

Sentia-me alguém que possa acreditar em Santa Bárbara...
Ah, poder crer em Santa Bárbara!
(Quem crê que há Santa Bárbara,
Julgará que ela é gente e visível
Ou que julgará dela?)

(Que artifício! Que sabem
As flores, as árvores, os rebanhos,
De Santa Bárbara?... Um ramo de árvore,
Se pensasse, nunca podia
Construir santos nem anjos...
Poderia julgar que o sol
Alumia, e que a trovoada
É uma quantidade de gente
Zangada por cima de nós...
Ah, como os mais simples dos homens
São doentes e confusos e estúpidos
Ao pé da clara simplicidade
E saúde em existir
Das árvores e das plantas!)

E eu, pensando em tudo isto,
Fiquei outra vez menos feliz...
Fiquei sombrio e adoecido e soturno
Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça
E nem sequer de noite chega...

(Alberto Caeiro)
(Pensar é estar doente dos olhos)

Alberto Caeiro