segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Mídia, cinismo e treva

(texto de Marilene Felinto publicado na Caros Amigos de setembro de 2008)

Nada a dizer a um público de jovens disposto a ouvir sobre mídia e poder, mídia e linguagem, mídia e educação. Nada que devesse dizer - eu que passei dez anos da minha vida me prostituindo num jornalão de São Paulo, servindo à perversidade dessa instituição chamada imprensa e, não bastasse isso, desaprendendo o pouco do que um dia soube (que vinha das áreas de literatura e línguas).

Não se trata de arrependimento. Aceito o período como quem foi acometido por uma doença grave que custou a passar, por uma espécie de cegueira temporária, um tipo qualquer de febre marcada por longos momentos de delírio. Uma doença: só me resta, pois, este protesto módico, esta mea-culpa ridícula, pelo destino que se armava contra mim e que fui incapaz de ver.

Mostrar talvez aos jovens apenas o meu autoflagelo, o castigo imposto, a mesma sensação de devastação de quando eu era menina e me obrigavam a me afastar dos brinquedos e das brincadeiras com outras crianças na rua porque eu estava doente: uma vez tive "doença de olhos" (como se dizia em Recife dos anos 1960). Passei dias com os olhos ardendo, pinicados por grãos de areia, vermelhos, purulentos, e submetida ao estranho tratamento que minha mãe conhecia: lavar meus olhos com o leite do peito de mulheres grávidas. Aquilo me enojava de tal modo... Mas eu aceitava resignada, como quem pagasse (pelo sangue de Cristo) o pecado cometido, como se profetizava nos cultos da igreja em que a mãe nos levava. Ninguém tinha culpa pelo meu horrível destino (o de ser atacada por vírus, doenças contagiosas e outras pragas) - apenas eu mesma.

Se fosse cristã, falava aos jovens hoje: fui prostituta e imoral, nada tenho a dizer a pessoas como vocês. Mas não sou. Dizer então que sou uma pessoa sem sabedoria nenhuma, que nada tem, portanto, a falar. A mídia não é educação, imprensa não ensina nada a ninguém, não é padrão para nada, não deve inspirar ninguém a nada porque mídia é mentira. Dizer apenas isso e deixar a sala, gaga.

Quem sabe oferecer uma bibliografia: antes de se ler um jornal ou uma revista, antes de se assistir a um telejornal ou a um anúncio de propaganda, deve-se estudar muito. Não se deve ler a imprensa sem antes conhecer o que se escreveu sobre ela. Somente assim pode-se entender a natureza do simulacro, da manipulação, da mentira.

Contra o universo de vaidade, futilidade e culto à personalidade que é o da mídia, só resta ao espectador-leitor armar-se com ferramentas de conhecimento, com postura política, com atitude anticonsumo que puna a publicidade nociva, por exemplo.

Um tal de Congresso Brasileiro de Publicidade realizado em julho último em São Paulo reuniu dezenas de gordos anunciantes de batata frita, açúcar, cerveja e outras porcarias em nome da "liberdade de expressão comercial". Exigem liberdade para anunciar o que quer que seja e do modo como quiserem nos meios de comunicação de massa: de cachaça a cocô para criancinhas e adultos. Vão criar uma "Frente Parlamentar" para pressionar pela liberdade de anuciar cocô. Ora, uma pesquisa da Universidade de Brasília monitorou, desde 2006, 2.560 horas de comerciais de produtos sujeitos à vigilância sanitária. Dessas peças publicitárias, 42% eram destinadas exclusivamente ao público infantil; e 89,7% eram de alimentos ricos em gordura e açúcar.

Sobre bebidas alcoólicas, dados do Ministério da Saúde mostram que entre 1995 e 1997 o alcoolismo ocupava o quarto lugar no grupo das doenças incapacitáveis. Anualmente, 17.500 pessoas morrem vítimas de acidentes de trânsito associados ao consumo de bebida alcoólica por parte dos motoristas - incentivados pelos anúncios publicitários. Mídia não educa - é cinismo e treva.